Eu te controlo, tu me controlas – Rosely Sayão

Filhos e pais se comunicam o dia todo, invadem a vida uns dos outros e, portanto, não tem privacidade. Fatos bem estranhos começam a fazer parte de nosso estilo de vida. Pais contratam detetives para averiguar se o filho está ou não envolvido com drogas.

Escolas colocam Câmeras em quase todo o seu espaço, para que os alunos possam ser observados pela internet. E, principalmente, o telefone celular tem sido usado para controlar a vida de filhos, namorados, cônjuges.

O celular, hoje, é quase como uma extensão do corpo de muita gente. Jovens não conseguem viver longe dele, crianças já passam a se valor desse aparelho com regularidade e adultos o usam sem a menor parcimônia. O problema é que o tipo de uso que estamos fazendo dessa tecnologia tem estragado muitos relacionamentos.

Quando os pais estão trabalhando, por exemplo, muitas vezes são interrompidos pelos filhos que querem saber o que comer quando chegam em casa, como resolver um problema na escola, a que horas o trabalho vai terminar.

Do mesmo modo, inclusive quando o filho está na escola, muitos pais ligam querendo saber como as coisas estão indo, se o filho comeu o lanche, se tem companhia na hora do intervalo. A separação entre pais e filhos em alguns períodos do dia, que permitiria a cada um cuidar da própria vida, está comprometida.

Filhos e pai se comunicam o dia todo, invadem a vida uns dos outros, controlam horários, atividades, companhia, compromissos e, portanto, não tem privacidade. Não é à toa que se esgotam nesses relacionamentos. E o que dizer, então, dos casais, seja um casal de adolescentes, que ensaiam seus primeiros passos nesse encontro afetivo com o outro, seja de jovens, que experimentam um relacionamento duradouro, ou daqueles que já estabeleceram um compromisso de vida juntos?

Uma adolescente me escreveu contando que sempre adorou usar usar o celular, porque gosta de falar com as amigas o tempo todo. Agora que está namorando, sua vida virou um inferno _ segundo suas próprias palavras. É que o namorado quer saber, pelo celular, cada passo que ela dá. Isso gera brigas porque, inclusive, ele reclama quando ela fala muito tempo com outra pessoa no aparelho.

E adivinhe, caro leitor, qual a dúvida dela. Ela quer ajuda para decidir se termina o namoro ou deixa de usar o celular!

Construímos um dilema contemporâneo dessa maneira não é verdade? Nesse mesmo tom, muitos casais controlam a vida um do outro. Quando um deles faz um programa sozinho _ como sair com amigos, jantar com colegas de trabalho, fatos naturais na vida de qualquer um _, agora precisa passar todo o roteiro ao seu par, em tempo real.

Quem está junto, a que horas chegou em casa, qual o caminho que fez, onde está. Que relacionamento sobrevive a isso? Controlar a vida dos filhos os ensina a também controlar a vida dos outros. E quem consegue viver controlado o tempo todo? Ninguém, a não ser que não tenha autonomia, não ame a liberdade, não preze a vida própria.

Quem se relaciona com o outro de modo possessivo ou permite ser objeto de posse do outro não consegue sustentar tal relacionamento por muito tempo.

O telefone celular pode contribuir para o desenvolvimento de muitas competências pessoais, estreitar relacionamentos. Vamos escolher usar de um modo que, em vez disso tudo, vai prejudicar os relacionamentos que tentamos manter vivos? É uma escolha muito insensata, não é?

 

Fonte:

https://www.mpro.mp.br/documents/29199/155848/Eu+te+controlo%2C%20tu+me+controlas.pdf/5d14a8a9-d744-4651-964d-aa5450fea479;jsessionid=134C4A1C150C4E0A2110E3973CDEA75C.node01?version=1.0